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Nicole Priuli comenta a mais recente decisão da Suprema Corte de UK sobre lucros cessantes.

A Suprema Corte do Reino Unido manteve o julgamento a favor dos segurados referente a indenização por lucros cessantes em decorrência da pandemia do Covid-19.


O COVID-19 e as medidas de saúde pública tomadas pelo governo do Reino Unido causaram perdas financeiras para empresas em todo o país. Muitas dessas empresas possuem apólices de seguro que as protegem contra lucros cessantes e milhares de reclamações foram feitas sob tais apólices, no entanto as seguradoras negaram cobertura com base na alegação de que as suas apólices não cobririam os efeitos (ou certos efeitos) da pandemia.


Deste modo, o Financial Conduct Authority (“FCA”) levou um “caso teste” para discussão judicial sob o qual questões de importância para o mercado foram analisadas, sem a necessidade de uma disputa específica entre as partes.


O FCA instaurou o processo em benefício dos segurados, muitos dos quais são pequenas e médias empresa, enquanto os réus são as oito principais seguradoras[1] emitentes de apólices de seguro contra lucros cessantes no mundo.


A abordagem adotada pelo FCA foi a de considerar uma amostra representativa de apólices de lucros cessantes padrão à luz dos fatos acordados e presumidos. Estima-se que, apesar de somente oito seguradores serem parte do processo, cerca de 700 tipos de apólices em mais de 60 seguradoras diferentes e 370.000 segurados podem ser potencialmente afetados pelo resultado deste processo.


A decisão de 1ª instancia foi proferida em 15/09/2020, sendo permitida a interposição de apelação no modelo “leapfrog”, ou seja, uma forma especial e relativamente rara de recurso em que o caso é encaminhado diretamente à a Suprema Corte sem ser apreciado pelo Tribunal de Recurso.


O recurso se baseia na interpretação adequada de quatro tipos de cláusulas que podem ser encontradas nas apólices relevantes, a seguir:

i) “Cláusulas de doença” (cláusulas que, em geral, proveem cobertura para perdas de lucros cessantes decorrentes de doença de notificação obrigatória, como o COVID-19, dentro de determinada distância da instalação comercial);

A Suprema Corte concluiu que a correta interpretação é de cobrir apenas os efeitos relevantes dos casos de COVID-19 que ocorram ou tenham ocorrido em ou dentro de um raio específico das dependências seguradas mencionadas na apólice. Eles não cobrem os efeitos dos casos de COVID-19 que ocorram ou tenham ocorrido fora dessa área geográfica.


ii) “Cláusulas de prevenção de acesso” (cláusulas que, em geral, proveem cobertura para lucros cessantes por intervenção das autoridades públicas que impeçam ou dificultem o acesso ou utilização dos estabelecimentos comerciais) e cláusulas híbridas contendo elementos das “cláusulas de doença” com raio de distância;

Embora as redações contratuais sejam diferentes para cada um dos segurados, as cláusulas constantes das apólices comercializadas pelas seguradoras são estruturadas de forma semelhante, i.e., “prejuízo resultante da prevenção de acesso às dependências devido a ações ou conselhos de um governo ou autoridade local devido a uma emergência que pode colocar vidas ou propriedades em perigo” e, como cláusula híbrida, "prejuízos resultantes única e diretamente de uma interrupção de suas atividades causada por sua impossibilidade de usar as dependências seguradas devido a restrições impostas por uma autoridade pública durante o período de seguro após a ocorrência de qualquer doença humana infecciosa ou contagiosa, cujo surto deve ser notificado à autoridade local.”


A discussão referente as cláusulas acima mencionadas girou em torno de (i) se uma “ocorrência de qualquer doença humana infecciosa ou contagiosa” poderia ser interpretada como uma ocorrência dentro de um raio das dependências seguradas, sendo interpretada como algo de pequena escala que não deveria ser aplicada à pandemia (assinala-se que a maioria das apólices utilizadas nesse “caso teste” possuem limitação territorial); (ii) se a interpretação a ser conferida às “restrições impostas por uma autoridade pública” estaria restrita à “lei” em sentido estrito ou englobaria outros tipos de normas (o que seria impactaria o “trigger” da cobertura para lucros cessantes); (iii) qual seria a correta interpretação da expressão “impossibilidade de uso”.


Nesse sentido, em relação aos pontos acima, a Suprema Corte entendeu que (i) cada caso individual de doença deve ser considerado como uma ocorrência e a sua restrição a ocorrências de pequena escala não poderia prosperar pois seria demasiado subjetiva, ensejando insegurança jurídica.; (ii) quaisquer normas, regulamentos e instruções são consideradas como “restrições impostas por uma autoridade pública”, não sendo imprescindível uma lei em sentido estrito, inclusive quando se tratar de situações de emergência, porém com exclusão de “conselhos ou advertências, ou distanciamento social e instruções para ficar em casa”; (iii) o uso deve ser efetivamente impossibilitado, e não apenas obstaculizado. Por outro lado, entendeu-se que a impossibilidade de uso não precisa se referir à totalidade das dependências comerciais. A referência a “dependências comerciais” deve ser interpretada como compreendendo uma parte dessas dependências que possa ser usada separadamente de outras partes ou para um objeto empresarial específico. Noutras palavras, não haveria nenhuma razão para que não se distingam diferentes objetos empresariais se as atividades correspondentes puderem ser conduzidas separadamente e o uso de apenas uma parte delas se vir impossibilitado.


Portanto, tal requisito – do impedimento do uso – estará cumprido se (a) o segurado não puder usar as suas dependências para exercer uma parte específica e discriminada de suas atividades comerciais ou se (b) não puder usar uma parte específica e discriminada de suas dependências para suas atividades comerciais. Em ambas as situações, existiria, segundo a Suprema Corte, uma impossibilidade total de uso. Na primeira situação, existiria uma impossibilidade total para exercer uma atividade comercial específica; na segunda, existiria uma impossibilidade de usar uma parte específica das dependências comerciais.


A decisão da Suprema Corte menciona exemplos que auxiliam a compreender tal diferenciação, como, por exemplo: 1. um restaurante que também ofereça serviços de delivery, mas que tenha decidido encerrar todo o negócio, e só poderia reclamar os lucros cessantes referentes ao restaurante; 2. um agente de viagens com 50% de clientes presenciais, 25% de vendas pela Internet e 25% de vendas por telefone, que só poderia reclamar lucros cessantes decorrentes da interrupção dos negócios presenciais, mesmo que todas as partes do negócio possam ter sofrido os efeitos do COVID-19 e das medidas governamentais impostas.


iii) “Nexo Causal”;

A Suprema Corte concluiu que, para evidenciar que os lucros cessantes foram causados por uma ou mais ocorrências de COVID-19, bastaria comprovar que a interrupção foi o resultado de uma ação governamental em resposta a, pelo menos, um caso de COVID-19 dentro do raio coberto. A base para esta conclusão é que cada um dos casos individuais de COVID-19 que tenham ocorrido até a data de qualquer ação governamental constituiu uma causa separada e igualmente eficaz dessa ação (e da resposta do público a ela).

Ademais, tal conclusão não depende da terminologia específica usada na apólice para descrever o nexo causal exigido entre o prejuízo e o risco coberto e se aplicará igualmente se o termo empregado for "seguir" (“following”), "decorrente de", "como um resultado de" (“arising from” or “as a result of”), entre outras, uma vez que a conclusão da Suprema Corte se refere ao efeito jurídico dos contratos de seguro na medida em que se aplicam aos fatos deste caso.


iv) “Cláusulas de tendências” (cláusulas que, em geral, preveem que os lucros cessantes serão quantificados de acordo com a previsão do desempenho do negócio caso o evento segurado não tivesse ocorrido).

A Suprema Corte concluiu que as cláusulas de tendências devem ser interpretadas de modo que o volume de negócios padrão ou o lucro bruto derivado de transações anteriores seja ajustado apenas para refletir as circunstâncias que não estejam relacionadas com o risco segurado, e não circunstâncias que estejam inextricavelmente ligadas ao risco segurado no sentido de que eles tenham a mesma causa subjacente ou originária. Tal abordagem garante que a cláusula de tendências seja interpretada de forma consistente com a cláusula de riscos cobertos, e não de forma a privar o segurado da cobertura securitária.

Portanto, considerou-se que as cláusulas de tendências não exigem que as perdas sejam ajustadas com base no fato de que, se o risco segurado não tivesse ocorrido, os resultados do negócio ainda teriam sido afetados por outras consequências da COVID-19.


v) Prejuízos sofridos antes do “trigger”

Conforme a interpretação da Suprema Corte, as tendências ou circunstâncias para as quais os ajustes podem ser feitos não incluem as tendências ou circunstâncias causadas pelo risco segurado (ou sua causa subjacente ou originária). Além disso, o objetivo de qualquer ajuste é procurar garantir que os valores ajustados representem, tanto quanto possível, os resultados financeiros que teriam sido alcançados durante o período indenitário caso o risco segurado (e sua causa subjacente ou originária) não houvesse ocorrido.


A título exemplificativo, a decisão menciona o seguinte cenário:

Uma reclamação apresentada por um proprietário de um pub ao qual o acesso foi impossibilitado quando o Primeiro-Ministro anunciou o fechamento de várias empresas, incluindo pubs, na noite de 20 de março e 21 de março. Suponha que, como resultado do clima de preocupação pública geral sobre o COVID-19 e das advertências do governo do Reino Unido antes de 20 de março de 2020, o faturamento do pub na semana que terminou em 20 de março houvesse sido de apenas 70% de seu faturamento na semana equivalente do ano anterior.


O Tribunal de 1ª instância havia admitido que, ao se estimar qual teria sido o volume de negócios do negócio durante o período indenitário, dever-se-ia levar em consideração essa redução. Essa análise considerou que a desaceleração teria continuado durante o período indenitário se o acesso ao pub não houvesse sido impossibilitado.


No entanto, a Suprema Corte entendeu que o Tribunal de 1ª instância cometeu um erro e que não seria permitido reduzir a indenização para refletir uma desaceleração causada pela pandemia, uma vez que tal atitude significaria se recusar a indenizar o segurado por prejuízos causados diretamente pelo risco segurado, vale dizer, pela mesma causa originária.


Deste modo, a Suprema Corte concluiu que os prejuízos devem ser avaliados com base no pressuposto da não ocorrência da pandemia de COVID-19. Em consonância com esta conclusão, o cálculo do prejuízo deveria desconsiderar os prejuízos ocorridos anteriormente ao trigger causados pela pandemia.


Diante do exposto, embora a Suprema Corte tenha aceitado alguns argumentos das seguradoras em seu recurso, estes argumentos não influenciaram decisivamente no resultado do processo, o que nos permite antever modificações futuras relevantes nos clausulados de lucros cessantes.


[1] (1) Arch Insurance (UK) Ltd (“Arch”); (2) Argenta Syndicate Management Ltd (“Argenta”); (3) Ecclesiastical Insurance Office Plc (“Ecclesiastical”); (4) Hiscox Insurance Company Ltd (“Hiscox”); (5) MS Amlin Underwriting Ltd (“MS Amlin”); (6) QBE UK Ltd (“QBE”); (7) Royal & Sun Alliance Insurance Plc (“RSA”); e (8) Zurich Insurance Plc (“Zurich”). Posteriormente, Hiscox Action Group (“Hiscox Interveners”) e Hospitality Insurance Group Action foram inclusas no processo como intervenientes.

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